domingo, 8 de abril de 2012

Terapia Cognitiva Processual - Muito


“Não existe modificação de crença sem modificação de atitude”

postado por Tatiana Mendonça @ 7:30 AM
8 de abril de 2012

Foto: Fernando Vivas | Ag. A TARDE
O psiquiatra e psicoterapeuta baiano Irismar Reis de Oliveira, 60, inspirou-se no livro O Processo, de Kafka, parar criar uma nova prática terapêutica, batizada de Terapia Cognitiva Processual. No seu consultório, os pacientes passaram a simular um julgamento em que são ao mesmo tempo promotores e advogados de defesa. O conjunto de técnicas vem chamando a atenção dos seus pares. Recentemente, Irismar apresentou o método em Nova York e já tem viagens agendadas para Paris e Califórnia. Leia trechos inéditos da entrevista com a repórter Tatiana Mendonça:
Como o senhor teve a ideia de adaptar O Processo, de Kafka, à sua prática terapêutica?
Não foi algo que se deu de um dia para outro. Já tenho uma prática longa como psiquiatra, de quase 30 anos, mas minha prática como terapeuta cognitivo é mais recente, começou há 15 anos. Ao longo desse tempo, fui sentindo que havia alguns pequenos vácuos. Então fui modificando as técnicas que havia aprendido na Terapia Cognitiva e de repente tive a sensação de que algo novo estava sendo criado. Cheguei a publicar um trabalho numa revista europeia sobre reversão de sentença, que é algo que já existia na Terapia Cognitiva. Quando se inverte a ordem da frase, ela ganha um sentido mais positivo. Por exemplo: “Estou empregado, mas ganho pouco”. Quando você pede ao paciente para inverter esta frase, ela fica: “Ganho pouco, mas estou empregado”. Mas eu não estava muito satisfeito com essa técnica, porque era difícil implementá-la fora do consultório. Normalmente, quando um paciente chega e conta um problema, você tem que escutá-lo, e a minha técnica que se baseava principalmente na inversão das sentenças, naquele momento meio que já tentava passar para o paciente que talvez o que ele estivesse dizendo não estava tão correto. E o paciente não tomava isso como uma coisa simpática, não acreditava que estava sendo compreendido. E isso me incomodava muito. Então, em 2007, estava casualmente passando por uma livraria e me deparei com O Processo, de Kafka, que tinha lido na adolescência e não tinha entendido muito bem. Mas aquilo imediatamente me fez pensar que se conseguisse transformar essa técnica num processo jurídico, tudo estaria resolvido. Bastava acrescentar duas colunas: aquela em que eu escuto o paciente e ele se queixa à vontade, como um promotor de si mesmo; e a outra, em que posso pedir a ele para contradizer o que estava falando com a versão da defesa. E então nós podemos ter a réplica, a tréplica, os jurados…  Ao reler O Processo, minha pergunta foi: será que Kafka não está propondo ali o princípio universal da autoacusação? A partir daí, foi só organizar esta e várias outras técnicas e fazer os trabalhos científicos para provar que o que passei a chamar Terapia Cognitiva Processual ou TCP, funcionava. E isso, felizmente, está sendo comprovado por outros colegas aqui e em outros países.
O senhor costuma usar a TCP para tratar quais tipos de transtorno?
Tenho utilizado com a maioria dos transtornos psiquiátricos, inclusive os mais graves. Não quer dizer que ela, por si só, resolva os problemas, mas em determinados momentos, ajuda bastante quando a gente faz a combinação com medicação. Nos transtornos de ansiedade, como nos casos menos graves de transtorno obsessivo-compulsivo, fobia social e até nos casos menos graves de depressão, passei a prescrever menos ou até utilizar a terapia sem necessidade de medicamento.
A TCP implica o paciente nesse jogo de ser promotor e advogado de defesa. Isso não é algo difícil de ser alcançado?
Não, isso faz parte da técnica. É inútil dizer ao paciente: ‘você tem isso e precisa fazer aquilo’, porque normalmente ele não obedece. É muito diferente quando o próprio paciente chega a essa conclusão. A isso chamamos de descoberta guiada. E aí faço um link com Kafka. Como é que um indivíduo vai descobrir quais são suas crenças mais profundas, do que ele se auto-acusa? Se eu disser: ‘olha, você se vê como uma pessoa incapaz’, isso vai soar no vazio. Mas posso fazer uma série de perguntas e ele mesmo vai chegar a essa conclusão, como uma descoberta feita por ele mesmo. Isso vai soar como uma autoacusação e aí nós temos as técnicas para ajudá-lo. O objetivo é sempre que ele saia do consultório melhor do que entrou, ao descobrir que a autoacusação não passa de uma crença e que ele pode fazer alguma coisa para se defender, o que não aconteceu com o personagem do livro de Kafka.
É curioso o senhor ter se inspirado por este livro, que não tem um final propriamente feliz…
É, no livro o indivíduo é condenado e executado sem jamais nem ter sabido do que o acusavam. Se você der uma olhada na própria história de Kafka, se você ler Carta ao Pai, verá que Kafka, ele próprio, era cheio de autoacusações. Mas em O Processo é interessante que o personagem  não se deixa passar pelo inquérito. E sendo assim, não tem como ele saber do que é acusado, embora aparentemente ele esteja o tempo todo buscando isso… Quando ele se relaciona com o advogado de defesa, ele se boicota o tempo todo. E ao final ele é condenado e executado, é um final infeliz. O que a gente pode oferecer de diferente é exatamente essa pergunta: o que aconteceria se Kafka tivesse uma resposta clara para as suas autoacusações e como resolvê-las?
Como o surrealista livro de Kafka, nossa tendência é realmente achar que há um certo complô, de que nada faz muito sentido…
Sim, principalmente quando estamos em crise. Deixe-me dar um exemplo prático. Vamos imaginar um indivíduo que trabalha numa fábrica durante 10, 15 anos. Aparentemente, nada há de anormal, mas se olharmos mais de perto, vamos perceber o seguinte: um dia, o chefe pede para que ele faça um curso e ele diz que talvez o colega tenha mais interesse. Em outro momento, o chefe dá uma tarefa para ele, mas esse funcionário sugere que a ofereça para um colega que gosta mais daquela tarefa… Então, vamos imaginar que um dia ele chegue à fábrica e descubra que haverá um enxugamento da empresa, com várias demissões. Em princípio, ele nunca teve necessidade de ter uma possível crença ‘sou incapaz, sou incompetente’ ativada, porque fez todo o necessário para ganhar seu salário. Mas então, naquele momento, essa crença será ativada. Ele vai ter pensamentos negativos do tipo ‘vou ser demitido, meu chefe não gosta de mim, etc’. Nas crises e nos transtornos psiquiátricos, essas crenças vêm à tona mais facilmente. Como um indivíduo num quadro depressivo se vê? ‘Sou incapaz, não tenho futuro’. E quais crenças estão ativadas num indivíduo com fobia social? ‘Sou estranho, defeituoso’. Quando damos muito peso a uma crença, que na Terapia Cognitiva chamamos de crença nuclear, ela tende a se auto-realizar.

Como o senhor vê hoje esses imbricamentos entre literatura e a psiquiatria, a psicoterapia?
Essa não é uma experiência nova. A psiquiatria e a psicoterapia ela tem exemplos e mais exemplos retirados da literatura e do cinema, também. O próprio Dostoiévski, que escreveu Crime e Castigo, que é a provável inspiração para O Processo, há ali uma grande quantidade de conhecimento psicológico. Dostoiéviski passou por situações extremamente difíceis, de quase execução.
São as nossas narrativas, no fim das contas…
E é como a gente narra a própria vida que conta. O que a gente faz na Terapia Cognitiva é dar um novo instrumento para que o indivíduo passe a narrar sua vida de uma forma diferente.
Quando o sujeito assume esse lugar de defender a si mesmo, de refazer a imagem que tem de si, há de certa forma um apaziguamento. A ideia da TCP é parar aí ou há um trabalho de modificar as atitudes, comportamentos?
Não, você está falando apenas do processo 1, mas tem o processo 2 (risos). O indivíduo questiona muito mais isso. O que é interessante na Terapia Cognitiva é que ela é muito didática, o indivíduo aprende técnicas, e ao aprendê-las, torna-se seu próprio terapeuta. Se alguém vem para cá, e eu ensino determinadas coisas e ele compreende, mas em casa já esquece aquilo, e só vai voltar  ao consultório na próxima semana, muito provavelmente nós não vamos conseguir ajudar esse indivíduo. Ou não poderemos ajudar o tanto que gostaríamos. Entretanto, se ele é um indivíduo que checa, que põe à prova esse conhecimento que ganhou aqui, então provavelmente vai se beneficiar muito mais. Isso já é mostrado em trabalhos científicos. O indivíduo que pratica mais os experimentos melhora mais e mais rápido.
Então essa modificação da crença é acompanhada por uma mudança de atitude.
Não existe modificação de crença sem modificação de atitude, é uma coisa que vem junto. Eu peço para o paciente juntar elementos que confirmem qualquer crença positiva a que ele tenha chegado à conclusão. Mas não basta dizer isso. Se for assim, o indivíduo não vai acreditar. Então ele precisa sair dali e no seu dia a dia trazer pequenos elementos que mostrem que isso é verdade. E o que é interessante é que isso toma pouquíssimo tempo. Basta que ele na realidade junte três ou quatro coisas, que eu passei a chamar de preparo para o recurso, ou seja, o indívduo será acusado sempre, e é importante que ele se prepare para esse recurso. Se ele tem uma crença de incapacidade, e nós fazemos um processo, e ele próprio se convence de que é capaz, para que isso se transforme numa mudança é importante que ele saia dali e comece a observar os elementos que mostrem que ele é capaz. Mas não é só observar. É preciso fazer pequenas tentativas diárias de fazer coisas que mostrem que ele é capaz. E isso envolve mudança de atitude.

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