domingo, 23 de maio de 2010

A dose certa de Ciúme - Veja

Sentimento inato

Para a psiquiatra Donatella Marazziti, quando se ama, ninguém está imune ao ciúme


A psiquiatra italiana Donatella Marazziti dedicou os últimos catorze anos de seu trabalho a estudar os aspectos bioquímicos e psicológicos relacionados aos sentimentos mais universais. Começou por investigar os mecanismos cerebrais relacionados à paixão e ao amor. Dessa linha de estudos resultou a publicação de A Natureza do Amor, best-seller na Itália e lançado no Brasil em 2007. Recentemente, Donatella esteve no país para participar do Congresso Brasileiro de Psiquiatria e lançar seu último livro: ...E Viveram Ciumentos & Felizes para Sempre (Casa Editorial Luminara). Nele, a psiquiatra, de 52 anos, defende a ideia de que o ciúme é um sentimento inato, com um papel importantíssimo na preservação das relações amorosas e do qual ninguém escapa. Em entrevista à repórter Naiara Magalhães, ela faz a distinção entre o ciúme normal e o patológico, estabelece os cinco perfis mais comuns de ciumentos e diz qual é a melhor arma contra o medo do abandono: "Não perco tempo pensando na possível traição do meu marido. Invisto minha energia cuidando dele!".


Em seu livro ...E Viveram Ciumentos & Felizes para Sempre, a senhora defende a ideia de que o ciúme cumpre um papel importante na manutenção da relação. Que papel é esse?


O ciúme funciona como um detector de ameaças, de que algo de errado está acontecendo na relação. Se as pessoas souberem interpretar as mensagens que o ciúme manda, poderão usá-lo em benefício do namoro ou do casamento. Na Itália, costumamos citar o verso de um tango: "Amor quer dizer ciúme".


É comum ouvirmos histórias de relações que são desfeitas por causa do ciúme de um dos parceiros – ou até dos dois.

Certa vez, um escritor italiano comparou o ciúme à pimenta usada para temperar a comida. É algo que pode dar mais sabor às relações, mas não deve ser excessivo. Do contrário, ninguém quer experimentar.


E como saber se o ciúme é ou não excessivo?

Essa é uma questão crucial não só para os ciumentos, como também para os psicólogos e psiquiatras que estudam o assunto. Há casos em que a patologia fica evidente. Mas às vezes é difícil definir a fronteira entre o normal e o patológico. Para mim, um dos critérios básicos nessa diferenciação é o tempo que o ciúme ocupa na vida de uma pessoa. O ciúme é normal quando dura pouco. Qual é o limite? Eu trabalho com o parâmetro de até uma hora por dia. Outro indicativo de que o ciúme é normal é que ele desaparece quando o parceiro assegura que não há motivo para senti-lo. No fim, não altera a vida do ciumento nem a de seu parceiro, apesar de causar sofrimento enquanto dura.


Como algo que implica sofrimento pode fazer bem?

Se a pessoa se pergunta "o que me faz sentir ciúme?", ela pode usar a reflexão que surge desse questionamento para melhorar a relação. É inevitável que o medo de ser traído e de a relação acabar cause dor. Mas, quando a pessoa se debruça sobre esses medos, em geral acaba por valorizar mais o parceiro. Podemos comparar o ciúme à dor física: é ruim senti-la, mas ela tem um papel vital para evitar que nos arrisquemos em experiências demasiadamente perigosas. Quem não sente dor pode morrer precocemente por se expor a riscos muito altos. A dor, assim, promove nossa evolução. Por outro lado, quem sente dores terríveis sofre demais e vive menos. O ciúme funciona de maneira semelhante: na medida certa, protege; em excesso, mata a relação.


O que caracteriza o excesso de ciúme?

Vasculhar a bolsa ou a carteira do parceiro, checar as mensagens do celular ou ligar para todos os amigos do marido ou da mulher cada vez que ele ou ela não atende ao telefone, por exemplo, não são comportamentos bons para o relacionamento, embora possam estar presentes em quadros de ciúme ainda considerados relativamente normais. São atitudes ruins porque colocam o foco no terceiro elemento da suposta traição, e não no parceiro, o que compromete a relação saudável.


Se bisbilhotar o computador e o celular do parceiro pode ser considerado até certo ponto normal, o que indica que o ciúme passou do limite e se tornou doentio?

Quando a pessoa restringe a vida do parceiro à relação do casal, provavelmente o ciúme já virou patológico. Primeiro, o ciumento consegue um jeito de o parceiro não ir mais à happy hour com os colegas do trabalho, depois o convence a não ir mais a encontros com os amigos de faculdade e, quando o parceiro se dá conta, já não pode cumprir atividades rotineiras, como ir ao supermercado ou ao banco, sem que isso não implique ser controlado. O namorado ou o marido, ou a namorada ou a mulher, passam a viver praticamente encarcerados na relação a dois. Mesmo querendo agradar ao ciumento, ao fazer tais concessões a pessoa que é alvo do ciúme sofre por ter abandonado sua vida social e por ter abdicado de vínculos afetivos importantes. O ciumento, por sua vez, nunca estará plenamente satisfeito com a situação que ele próprio criou – qualquer esboço de vontade por parte do outro de retomar a vida vai causar-lhe ainda mais apreensão. O ciúme doentio não dá um momento de tranquilidade nem ao ciumento nem ao parceiro dele. Nunca está satisfeito.

Se sentir ciúme é inevitável, o que é possível fazer para amenizar o sofrimento que ele causa?

Duas atitudes são fundamentais para a pessoa lidar bem com o ciúme e torná-lo menos sofrido. A primeira é parar para refletir sempre que o ciúme aparecer. É preciso tentar entender a origem do sentimento. Você sente ciúme porque já foi traído e tem medo de que a experiência ruim do passado se repita? O problema está em você ou em seu parceiro? O ciúme foi desencadeado por sua insegurança? Seu parceiro fez alguma coisa que ameaçou de fato a relação? A segunda coisa é falar com o parceiro sobre o ciúme que você sente. Se o problema for tratado sem histeria (ou seja, nunca no auge de uma crise e sempre depois de restaurada a calma), esse tipo de conversa poderá ter um grande benefício para o casal. O parceiro concordará em evitar alguns comportamentos que não lhe são indispensáveis, mas fazem o outro sofrer.


Alguém está imune ao ciúme?

Quando se ama, não. Todo mundo sente, já sentiu ou sentirá ciúme do amado. Muitas pessoas podem até achar que não têm ciúme, mas elas estão enganadas. O ciúme normal é um sentimento efêmero: emerge e vai embora. É isso que faz com que muita gente se diga imune a ele. Quando uma pessoa vem a mim e diz "doutora, eu não sou ciumento", proponho o seguinte exercício: peço a ela que pense em seu parceiro conversando com um homem ou uma mulher atraente. Em seguida, peço que imagine que os dois estão se beijando. Vamos assim, num crescendo, até o ciúme emergir. E eu garanto: ele sempre aparece.

Qual é o peso dos fatores culturais no modo como as pessoas costumam manifestar o ciúme?


Os componentes culturais têm influência, sem dúvida. Mas, para mim, o papel mais decisivo cabe à biologia: o ciúme é um sentimento inato. E há vários indícios disso. Um deles é o fato de que o ciúme está presente nas mais diferentes culturas, dos Estados Unidos à China. Ao longo da história, algumas sociedades tentaram evitar o ciúme, mas, por mais esforços que tenham feito, não conseguiram. Comunidades americanas fundadas no século XIX, como a dos mórmons e a dos oneidas, baseadas na poligamia e no amor livre, não conseguiram abafar o sentimento. Há o caso célebre de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Eles optaram por um casamento aberto, mas não evitaram o ciúme e o sofrimento trazido por ele. O ciúme é um sentimento exclusivamente humano – um sentimento complexo, que envolve áreas cerebrais e processos mentais que não estão desenvolvidos nos animais.


É comum vermos relações desgastadas, em que o homem e a mulher não demonstram mais amor um pelo outro mas continuam a apresentar comportamentos típicos dos ciumentos.


Nesses casos, é provável que o homem ou a mulher considere o parceiro apenas objeto de sua posse. Esse tipo de comportamento tem pouco (ou nada) a ver com o amor – e, portanto, tem pouco (ou nada) a ver com o ciúme normal. No ciúme patológico, a vaidade e a possessão assumem um papel maior. Repito: o foco do ciúme normal é o parceiro que o enciumado tanto ama e teme perder. O foco do sentimento patológico é o próprio ciumento.


As pessoas com baixa autoestima estão mais vulneráveis às crises de ciúme?


O ciúme não tem a ver com falta de autoconfiança, necessariamente. Há vários traços de personalidade que podem favorecer seu aparecimento. Num estudo com 500 pessoas que realizei com meu grupo de pesquisa, foram identificados cinco tipos de ciúme que podem variar na escala da normalidade: o ciúme depressivo, que realmente está relacionado à baixa autoestima, mas também o obsessivo, o paranoide, o hipersensível e o ansioso.


O que caracteriza cada um desses tipos de ciúme?

O ciúme depressivo acomete pessoas que sempre consideram seus parceiros melhores do que elas. Para essas, é óbvio que, se ainda não foram, um dia serão traídas. O ciumento do tipo depressivo não costuma tomar muitas atitudes com relação a seu sentimento. Geralmente sofre sozinho, calado. É o que chamamos de ciúme "Charlie Brown", em referência àquele personagem dos quadrinhos. A marca do ciúme obsessivo são os questionamentos e comportamentos repetitivos. Os ciumentos dessa categoria vasculham reiteradamente as coisas do parceiro, checam os bolsos e as mensagens no celular à procura de indícios de traição. Ligam o tempo todo para ele e perguntam: "Você me ama?". E também sempre questionam a si mesmos: "Ele me ama? Ele me trai?". São consumidos pela dúvida constante. É o ciúme que rotulamos "Hamlet". Já o ciúme paranoide é típico do sujeito que tem um grau maior de certeza de que o parceiro o trai. Ele fantasia a traição valendo-se de indícios que só são significativos para ele. São pessoas muito rígidas no seu modo de pensar e de agir. Criam regras que elas próprias seguem e cobram do parceiro que ele tenha os mesmos comportamentos. Dizem coisas do tipo: "Eu recusei sair com meus amigos hoje, então não encontre seus amigos amanhã". A esse tipo de ciúme chamamos de ciúme "Otelo". O ciúme hipersensível é típico das pessoas melindrosas. Elas não suportam a reprovação ou uma palavra mais brusca do parceiro, mas preferem sofrer em silêncio. O ciúme ansioso, por fim, é comum entre as pessoas que estão em constante estado de alerta. Na verdade, é um desdobramento da própria ansiedade.

O celular e a internet, principalmente as redes sociais como Facebook, Orkut e Twitter, não servem de combustível ao ciúme?

Esses recursos alimentam o ciúme, sem dúvida. De um lado, porque aumentam realmente as possibilidades de traição e, consequentemente, ampliam os motivos para o aparecimento do sentimento. Atualmente, sem sair de casa, uma pessoa pode conhecer outra pela internet e acabar tendo com ela uma relação extraconjugal. De outro lado, essas ferramentas deixam as pessoas mais suscetíveis à vigilância do ciumento. As relações ficam muito mais expostas.

A senhora é ciumenta?


Eu me considero levemente ciumenta. Ocasionalmente, sinto mais ciúme do que o habitual, mas consigo dominá-lo. Tenho uma fórmula para não ser consumida pelo ciúme: não perco tempo pensando na possível traição do meu marido. Invisto minha energia cuidando dele! Funciona, eu garanto.

2 comentários:

  1. Muito boa a matéria para refletirmos a dose certa do ciúmes!

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  2. Ótima matéria..diria que meu namorado seria uma combinação de Hamlet com Otelo..

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